Entrevista

O complexo papel da polícia

O complexo papel da polícia

Para os professores Diego Pulido Esteva e Diego Antonio Galeano, a sociedade também participa das maneiras como a criminalidade e a ilegalidade são definidas ao longo do tempo (Foto: Caio Matheus)

O Seminário Internacional Polícia e Criminalidade no Mundo Atlântico vai reunir pesquisadores da Itália, México e Brasil para discutir polícia e criminalidade no Mundo Atlântico, entre os dias 26 e 29 de abril, na sala 502-F. Os organizadores são os professores Diego Antonio Galeano, do Departamento de História da PUC-Rio, e pesquisador do Laboratório de Conexões Atlânticas, e o mexicano Diego Pulido Esteva, do Centro de Estudios Historicos do Colegio de México (COLMEX). Confira a programação do seminário aqui.

Desde Michel Foucault e Norbert Elias, outros olhares e discussões surgiram para pensar a violência por parte do Estado. Qual é o papel da polícia nas sociedades do mundo atlântico?

Diego Pulido: De fato, a questão da violência é central no surgimento dos estudos policiais, na consolidação de um campo que transformou as polícias em um objeto de pesquisa acadêmica. Esse processo começou na década de 1960, em um contexto marcado pela repressão estatal de diversos movimentos sociais, e de enfrentamentos entre policiais e manifestantes, por exemplo, nas lutas antirracistas nos Estados Unidos. Foi nesse contexto que apareceram os primeiros livros de sociologia e antropologia da polícia. Alguns anos mais tarde, os historiadores somaram suas vozes a este campo, sobretudo desde a perspectiva da história urbana. O que estes trabalhos pioneiros tinham como eixo comum era uma tentativa de pensar o Estado e a violência estatal no cotidiano. Colocar a polícia no centro da interrogação significava uma certa intenção de defender a possibilidade de uma etnografia e de uma historiografia da construção cotidiana de autoridade estatal, uma história do Estado vista de baixo.

Como este campo pensa a relação entre a violência estatal, a polícia e o estado de direito nas sociedades democráticas?

Diego Galeano: Uma primeira questão a ser pontuada é que o campo dos estudos policiais se desenvolveu em múltiplas direções, para além do problema dos usos da força pública. É verdade que a violência estatal ocupou inicialmente um lugar bastante central, em parte pela herança da tradição weberiana de analisar o Estado como uma agência que se define em relação com a disputa pelo monopólio da violência legítima. Em parte, especialmente aqui na América Latina, pela intenção de compreender a historicidade das violências praticadas por governos autoritários e ditaduras do século XX.
Porém, acontece que o campo foi deslocando-se das perguntas estado-centradas e focadas na ideia do policial como braço armado do Estado para pesquisas cada vez mais preocupadas pelas práticas e pelos atores. Se tivéssemos que sintetizar esse deslocamento, poderíamos dizer: se passou de uma indagação sobre o que é a polícia para a formulação de perguntas sobre o que faz a polícia. Essa linhagem interpretativa se nota nos próprios títulos dos livros. Por exemplo, um dos primeiros estudos de história da polícia no Brasil, do Marcos Bretas, se chama “A guerra das ruas” e um dos livros que discutiremos no seminário, do Diego Pulido, “La ley en la calle”, “A lei na rua”, o que reflete esse movimento de pensar as práticas policiais cotidianas, essa história da estatalidade ao rés do chão. E também uma história dos policiais, na sua diversidade e complexidade, e não apenas uma história institucional das polícias.

Em que medida as discussões do seminário podem ajudar a jogar luz sobre o tema da polícia e da criminalidade?

Diego Galeano: Este seminário internacional surgiu pela confluência de dois fatores: a estadia na PUC de Diego Pulido como professor visitante, através do programa CAPES-Print, e o lançamento recente de dois livros que tratam sobre a relação entre polícia e sociedade em perspectiva histórica. Um é o próprio La ley en la calle, que é uma história da polícia na cidade de México entre 1860 e 1940, e o outro é um volume coletivo, Policía y Sociedad en la Argentina, que eu organizei junto com a historiadora Lila Caimari. Focar na relação entre a polícia e a sociedade significa abrir caminhos para ir além de uma história institucional da polícia e uma busca de compreender que as práticas policiais, assim como a administração de justiçA criminal e a própria criminalidade, são fenômenos construídos nas disputas cotidianas entre diferentes atores. Não são as instituições estatais nem os governos os que definem de cima para baixo unilateralmente como se reprime e que tipo de policiamento é possível. A sociedade, em toda a sua heterogeneidade, participa desses processos de diversas maneiras. Pleiteando e demandando segurança pública, ou protestando contra os abusos dos policiais, entre outros aspectos e também participa das maneiras como a criminalidade e a ilegalidade são definidas e redefinidas ao longo do tempo.

Diego Pulido: Ao mesmo tempo, o seminário também aborda a questão da criminalidade econômica. Haverá uma mesa específica sobre isso, que é uma via de entrada ao problema da participação da polícia nos mundos da ilegalidade. Nosso campo de pesquisa tem demonstrado a insustentabilidade empírica do binarismo que opõe polícia e criminalidade como sendo dois mundos separados e enfrentados. Ou seja, a imagem tão explorada pela cinematografia da luta entre o mundo da lei e da ordem, de um lado, e o mundo da transgressão, da desordem e dos fora-da-lei, do outro. A polícia é parte do processo de construção social da criminalidade. Não apenas por conta dos fenômenos de corrupção, que ambos os livros estudam para os casos do México e da Argentina, mas também pelo papel dos policiais na negociação cotidiana das categorias que definem as práticas e sujeitos que são criminalizados. Aquilo que é objeto da intervenção policial e aquilo que permanece em zonas de inação, mesmo quando se trata de comportamentos tipificados como crime pelos códigos. No seminário vamos discutir essas questões a partir de pesquisas concretas de diversos países do mundo atlântico.