Entrevista

Pesquisa revela um resistente Brasil que lê

Por: Kecila Barcelos

Pesquisa revela um resistente Brasil que lê

Elaborada pelo Instituto Interdisciplinar de Leitura e pela Cátedra UNESCO da PUC-Rio por encomenda do Instituto Itaú Cultural e a supervisão da JCastilho Consultoria, a pesquisa O Brasil que Lê mapeou 372 projetos de formação de leitores das últimas três décadas no país, que atendem cerca de 220 mil pessoas. O levantamento foi desenhado em 2019 e aplicado em 2020, de forma remota. O estudo revela uma pluralidade nos lugares e públicos atendidos: quase um terço das ações ocorre em espaços informais de educação, como ruas, praças e presídios; o público-alvo se estende às mulheres, encarcerados, afrodescendentes e outros grupos. Apesar das iniciativas terem como principal objetivo a ampliação do universo cultural pela leitura, a ausência de subsídios estatais ameaça a sua continuidade. A diretora do iiLer, Gilda Carvalho, e o fundador da JCastilho Consultoria, José Castilho, contam um pouco sobre a importância das ações de incentivo à leitura e os desafios enfrentados.

Cerca de 74% dos projetos são liderados por mulheres. Como as ações de incentivo à leitura auxiliam na independência e empoderamento feminino?
Gilda Carvalho:
Penso que estar em contato com outras mulheres e partilhar leituras e sentimentos que esses textos provocam são ações potencializadoras de mudanças, porque é isso que a leitura faz com as pessoas, sobretudo aquela leitura partilhada com outros em atividades voltadas para isso. É uma questão de resgate de identidades que faz com que o leitor assuma sua realidade e a transforme, se isso for necessário. Nesses casos, tanto o texto lido quanto o vínculo com um grupo de apoio são fundamentais para o empoderamento e conquista de independência.

Como os projetos de leitura que atuam nas prisões podem reintegrar os apenados à sociedade?
Gilda:
No Brasil, já existe a possibilidade de remição de pena pela leitura. O problema é que muitas vezes este trabalho é restrito à leitura e resenha dos livros para posterior submissão ao juiz penal para abatimento da pena, ou seja, se caracteriza por um trabalho quantitativo e não qualitativo. Há, contudo, projetos exemplares nessa área no Tocantins, no Paraná e em Santa Catarina, todos com uma intensa parceria entre secretarias ou presídios e a universidade. Nesses projetos, os resultados positivos podem ser percebidos pelo movimento dos participantes para retorno aos estudos e busca de profissionalização, o que em si demonstra um desejo de plena reintegração à sociedade.

Além da ascensão social visada pelas pessoas atendidas, que outros benefícios as ações de leitura trazem para a sociedade como um todo?
Gilda:
Uma sociedade leitora é uma sociedade crítica, que sabe aonde quer chegar e que não se permite manipular. Diante da guerra de (des)informações que vivemos cotidianamente é fundamental que cada indivíduo possa ser um leitor autônomo, capaz de perceber os encaminhamentos históricos e políticos desde sua vida pessoal até o de seu país. Só dessa forma seremos capazes de exercer cidadania com responsabilidade, respeito e diálogo.

Além da articulação em rede e de incentivos fiscais públicos, que outras estratégias podem ser usadas para garantir a continuidade das ações?
José Castilho:
A continuidade dos projetos por intermédio de redes é algo intrínseco ao processo de formação de leitores. Do ponto de vista do que a política pública pode contribuir para a sustentabilidade dos projetos de formação de leitores, ressalto que, apesar da ausência de articulação do Plano Nacional do Livro e Leitura – PNLL no governo destrutivo atual, muitos municípios e estados continuam se articulando nas redes que constituem os seus Planos Estaduais e Planos Municipais de Livro e Leitura. Entendo que na organização em rede e em torno de planos municipais, agregando sociedade civil e os poderes públicos do município, muito se poderá avançar. Não apenas em incentivos fiscais, mas no planejamento conjunto, tendo por base a leitura literária, de muitos projetos envolvendo a educação e a cultura naqueles territórios.

Grande parte dos projetos atua nos principais centros urbanos do país. Como isto reflete no desenvolvimento educacional desigual do Brasil?
Castilho
: No desenvolvimento de projetos educacionais e culturais, a desigualdade se expressa, principalmente, se analisarmos a descontinuidade de políticas públicas que têm, por obrigação legal e de Estado, aplicar programas para toda a população nacional, sem privilégios de qualquer natureza. Com uma concentração industrial e comercial forte nos grandes centros urbanos, e com as iniciativas culturais e educacionais sustentadas por setores privados, quando vivenciamos governos omissos ou destruidores como o atual, a concentração é consequência desta estrutura. E é claro que se reflete no desenvolvimento de oportunidades educacionais desiguais entre as regiões brasileiras e entre as metrópoles e os pequenos centros.