Entrevista

Mentalidade inquisitória versus democracia

Mentalidade inquisitória versus democracia

Encarceramento em massa, violência policial, pouca efetividade da Constituição da República são heranças da mentalidade inquisitória, segundo a professora Victória Sulocki

O 10° Congresso Internacional do Observatório da Mentalidade Inquisitória terá como tema os “60 anos do autoritarismo no Processo Penal”. Não por acaso, advogados, professores e alunos da PUC-Rio e da UFF vão discutir também a ditadura civil-militar brasileira que completa seis décadas. Nos dias 6, 7 e 8 de maio, no Auditório B6 (Ala Frings), o debate se estende a outras ditaduras da América Latina. Para se inscrever e conferir a programação, clique aqui.

O que é mentalidade inquisitória no Direito?
Victoria Sulocki:
A mentalidade inquisitória no Direito é a permanência da mentalidade autori-
tária e absolutista no direito, especialmente no direito processual penal, cuja a marca se revela em ativismo judicial que prejudica a imparcialidade do juiz, um excessivo número de prisões preventivas, quase uma “pena antecipada”, relativização de direitos e garantias fundamentais. Ou seja, uma permanência que viola a efetivida- de do processo penal democrático trazido pela Constituição Federal de 1988. A mentalidade inquisitória é que acaba por permitir que um Código de Processo Penal de 1941, feito sob a égide do autoritarismo vigente, pelas mãos de Francisco Campos e com clara inspiração no Código Rocco do fascismo italiano, tenha plena vigência, ainda que pontualmente reformado, após 35 anos da democrática Constituição da República.

Como nasceu o Observatório da Mentalidade Inquisitória e qual o objetivo dessa conferên-
cia internacional?

Victoria Sulocki: O Observatório da Mentalidade Inquisitória nasceu, há quase 10 anos, de iniciativas de pesquisa empreendidas em diferentes faculdades e universidades, por várias pessoas, pesquisadores e alunos. A finalidade do Observatório é produzir e divulgar conhecimento que permita à comunidade jurídica reconhecer a nefasta permanência da mentalidade inquisitória, a despeito da Constituição de 1988, no processo penal brasileiro. Tal permanência opera efeitos contundentes e bastante amplos no cotidiano do sistema penal e, também, na formação dos juristas. Superá-la é a condição de possibilidade de um processo penal calcado na Constituição e orientado a valores democráticos. Esse será o 10° Congresso Internacional do Observatório e pela primeira vez será realizado no Rio de Janeiro. O tema “60 anos do autoritarismo no Processo Penal” está diretamente ligado aos sessenta anos da ditadura civil-militar que se instalou no Brasil, em 1964, e ao debate das ditaduras daquela recente época na América Latina. O processo penal autoritário não é outro senão o de matriz inquisitória que tanto permanece em nossas estruturas, podendo ser percebidas no encarceramento em massa, sobretudo através de prisões temporárias e preventivas, na violência policial, na pouca efetividade da Constituição da República.

Uma das palestrantes será Cecília Maria Bouças Coimbra, psicóloga, pesquisadora, historiadora e uma das fundadoras do grupo Tortura Nunca Mais/RJ. Você concorda com Cecília que o Estado não fez Justiça com as vítimas da ditadura e seus familiares?
Victoria Sulocki: Apesar dos esforços, com a criação da Comissão Nacional da Verdade em 2011, sob o pálio do então Ministro de Direitos Humanos, Paulo Vannuchi, que também é um dos palestrantes, tendo seu relatório final sido entregue em dezembro de 2014, não conseguimos avançar para efetivas medidas recomendadas pela Comissão. Pesquisas que monitoram o cumprimento das recomendações da CNV, informam que menos de 10% delas foram totalmente cumpridas. Recentemente, algumas dessas recomendações foram retomadas, surgindo novos horizontes para suas efetivações mas ainda há muito por fazer.

Os 60 anos do início da ditadura no Brasil quase passaram despercebidos em muitas instituições. O próprio Governo preferiu não discutir a data. Qual a importância da efeméride em um país como o nosso?
Victoria Sulocki: A memória é fundamental para resolvermos questões passadas e avançarmospara caminhos novos. Não é à toa que o período da ditadura deixou marcas na nossa história, ainda não superadas, por ausência dessa memória. Os eventos de 8 de janeiro de 2023 são um exemplo trágico dessa não superação. Os países latino-americanos, ao saírem dos períodos ditatoriais, não só fizeram novas Constituições democráticas, mas também repensaram e legislaram novos códigos penais e processuais penais com a ideia de romper com o autoritarismo. O Brasil é o único país da América Latina que, apesar da Constituição de 1988, democrática e garantidora de direitos, não rompeu com a mentalidade autoritária e mantém seus Códigos anteriores. Isso é simbólico do quanto não realizamos devidamente essa ruptura tão necessária para nossa democracia.

No Chile, Uruguai e Argentina, militares foram presos e museus inaugurados. No Brasil, a Comissão da Verdade registrou 434 mortos e desaparecidos. Por que o país ainda não conseguiu mostrar para a sociedade o que aconteceu durante a ditadura?
Victoria Sulocki: Essa é uma situação que, a meu ver, decorre de vários fatores, entre eles, o que eu mencionei acima: a falta de programas, políticas públicas e espaços para memória de nossa história. Um país no qual o imaginário social ainda é escravocrata e patriarcal, o autoritarismo é uma marca que só será rompida com a recuperação dessa memória dos acontecimentos violentos que marcam nossa história e portanto a formação do Brasil.