Entrevistas

O dom de interpretar a fala do outro

O dom de interpretar a fala do outro

Fernanda Mathias e Raffaella Quental trazem para a PUC-Rio a exposição 1 Julgamento, 4 Línguas

No dia 14 de abril, haverá a abertura oficial da exposição 1 Julgamento, 4 Línguas: os pioneiros da interpretação simultânea em Nuremberg, nos pilotis do Edifício Cardeal Lema, que contará com a presença da presidente da Associação Internacional de Intérpretes de Conferência (AIIC), Jennifer Fearnside-Bitsios. A mostra, que já foi exibida em dez países, revela como foi complexo o trabalho de 36 intérpretes do Tribunal de Nuremberg, em 1945. Eles acompanharam em quatro idiomas simultâneos os interrogatórios e os depoimentos dos réus sobre os crimes cometidos durante a Segunda Guerra Mundial. Na PUC-Rio, a exposição tem o apoio do Departamento de Letras, e ficará montada de 15 de abril a 13 de maio, das 8h às 18h. Esta edição brasileira da mostra é uma parceria da AIIC Brasil com a Associação Profissional de Intérpretes de Conferência (APIC) e foi apresentada em São Paulo em março. A Coordenadora do curso de Formação de Intérpretes da PUC-Rio, professora Raffaella Quental, e a Presidente da AIIC Brasil, Fernanda Mathias, contam um pouco da história da profissão e como ela evoluiu nos últimos anos.

Além do profundo conhecimento dos idiomas e da formação específica, como o curso da PUC-Rio, os intérpretes profissionais precisam ter controle emocional para ouvir depoimentos e confissões chocantes?
Raffaella Quental: Em muitos casos, como em tribunais ou em situações de conflito armado, os intérpretes são confrontados com situações e falas extremas. Acontece que os intérpretes precisam ser a voz de outras pessoas, se um interlocutor se expressa agressivamente ou relata fatos violentos, tudo isto terá que passar pela boca – e pela mente – dos intérpretes. Existe inclusive o conceito de “trauma vicário”, que é justamente o trauma sofrido por quem presencia ou experimenta de alguma forma o sofrimento de terceiros. Isto exige extremo profissionalismo e sangue frio, além de uma clara noção dos seus limites, emocionalmente falando. Essas são situações extremas, mas, de forma geral, intérpretes precisam assumir uma postura de não envolvimento emocional com aquilo que transmitem, para evitar interferências na mensagem. Existe toda uma orientação para isso nos cursos de formação de intérpretes.

A partir do que foi realizado no Tribunal de Nuremberg, adotou-se um padrão profissional que até hoje é usado em diferentes atividades da sociedade. Das assembleias gerais da ONU a coberturas jornalísticas de diferentes temáticas, o que se tornou padrão e o que ficou obsoleto em 70 anos de existência da AIIC?
Fernanda Mathias: Acho que podemos dizer sem medo que a modalidade simultânea de interpretação, objeto da exposição, se tornou padrão. É a modalidade mais utilizada em contextos multilíngues, seja em cabines de interpretação, seja com uso de equipamento portátil ou até mesmo de forma sussurrada, para um ou dois ouvintes. O que se usava antes era a modalidade consecutiva, sem equipamento, em que orador e intérprete se revezam. A consecutiva ainda é utilizada hoje, porém, além de consumir muito mais tempo, ela fica inviável quando o evento envolve mais de dois idiomas. Imagine um julgamento como o de Nuremberg, com quatro idiomas oficiais, sendo feito em consecutiva. Seria uma verdadeira Babel, e o Tribunal não teria terminado os procedimentos em menos de um ano, como foi o caso. Quanto ao que ficou obsoleto, eu diria que foi o equipamento. Ele evoluiu muito ao longo dos anos. Com ele, evoluíram também as normas e padrões de boas práticas profissionais, hoje muito diferentes do que foi visto nos julgamentos de Nuremberg. A evolução chegou a tal ponto que hoje, com o trabalho remoto, vivemos uma revolução parecida com a chegada da simultânea no mundo da interpretação. Muitos eventos e reuniões internacionais são hoje on-line, especialmente depois da pandemia de Covid-19. Ou seja, os intérpretes precisaram se adequar rapidamente ao avanço tecnológico e à demanda por trabalho na modalidade que ficou conhecida como RSI, sigla em inglês para interpretação simultânea remota.

Quanto tempo leva o curso de formação de intérpretes e quais são as principais qualidades do futuro profissional?
Raffaella: Existem diferentes formatos de cursos de interpretação. Mas, de forma geral, o consenso internacional prega que uma boa formação de intérpretes precisa ter de um a dois anos de duração. Ela deve ser uma pós-graduação, ou seja, os alunos precisam já ser diplomados em alguma área do conhecimento, para assegurar um maior conhecimento de mundo e maior maturidade. Precisam também já ter domínio de pelo menos duas línguas de trabalho. Aqui no Brasil, essas línguas costumam ser o português e o inglês, devido à demanda de mercado. Mas outros idiomas podem se beneficiar das técnicas aprendidas na formação e serem incluídos na sua combinação linguística. O futuro profissional precisa ser versátil, pois vai trabalhar cada vez num lugar diferente, com temas e colegas de trabalho os mais variados. Precisa ser curioso e gostar de aprender sobre tudo, ter tato e espírito de equipe, saber trabalhar sob pressão (imagine interromper a interpretação porque teve uma crise de choro ou de riso) e ser, acima de tudo, uma pessoa ética, pois terá de lidar com assuntos delicados e confidenciais. Ser a voz de outra pessoa não lhe dá o direito de usar as informações às quais você tem acesso para benefício próprio, nem dá o direito de julgar os outros por suas palavras ou crenças. Mas não se deve confundir imparcialidade com frieza. Ou seja, quando interpretamos alguém, precisamos ser empáticos e entender o lugar de fala do outro para conseguir transmitir a mensagem da maneira mais fiel possível.

Qual é a importância da presença da presidente da AIIC, Jennifer Fearnside-Bitsios, no campus da PUC-Rio, no dia 14 de abril?
Fernanda: A edição brasileira da exposição está sendo realizada em parceria com a APIC, Associação Profissional de Intérpretes de Conferência, com sede em São Paulo. Mas a exposição nasceu no seio da AIIC, e a Jennifer foi a primeira pessoa que a levou para fora do território alemão, dando início a um movimento que agora chegou ao Brasil. Assim, a presença dela aqui é muito simbólica para os membros dessas associações e também para os intérpretes em geral, pois muito do que temos como normas de trabalho hoje é resultado do que a AIIC construiu e conquistou ao longo dos anos, desde sua fundação em 1953.O fato de a exposição ser exibida em uma universidade é, sem dúvida, uma oportunidade para mostrar ao público em geral que a interpretação de conferências não acontece num vácuo. Ela se insere nos mais diversos contextos e tem impacto em todas essas esferas mencionadas, além de ser moldada pelos avanços e mudanças nos setores. Acreditamos que diversos departamentos da Universidade poderão se beneficiar com a exploração deste tema, a interpretação simultânea nos Julgamentos de Nuremberg. Mas o foco da exposição são os homens e as mulheres que atuaram como intérpretes, com suas diferentes experiências e histórias de vida. Muitos, inclusive, foram vítimas dos mesmos crimes que estavam sendo julgados. Ou seja, como não poderia deixar de ser, estamos falando não somente de interpretação, justiça, guerra, história, tecnologia, mas de humanidade.