Entrevista

A literatura como bisturi

Por: Letícia Guimarães

A literatura como bisturi

Ana Kiffer (foto: divulgação)

“Literatura e Relação – da apropriação às novas divisões” é o tema do Colóquio Internacional de Literatura, marcado no Auditório do RDC, nos dias 12 e 13 de setembro, das 8h às 18h. Em janeiro de 2024, a conferência ocorrerá também em Paris, onde se fará uma análise comparativa entre o fenômeno relacional no Brasil e na França. Pensado por uma equipe binacional, o encontro é coordenado pelo diretor do Departamento de Letras, professor Alexandre Montaury, e pela professora Ana Kiffer. O compromisso literário será dar visibilidade a comunidades e culturas apagadas ou excluídas. Além disso, o colóquio vai discutir as novas tecnologias e a ligação entre as pessoas que vêm democratizando a atividade da escrita. Entre os convidados, estão Alexandre Gefen, Dominique Viart, Adrian Ileva, Edimilson Pereira de Almeida, Micheliny Verunschk, entre outros. “O ‘todos’ está sobre a mesa de autópsia, digamos. E nele a literatura escreve como um bisturi. Isso a liga de um modo específico ao nosso tempo”, adianta a professora Ana Kiffer.

O que significa o título do Colóquio: “Literatura e Relação – da apropriação às novas divisões”?
Ana Kiffer:
Em primeiro lugar, o fato de que a literatura, se hoje se constrói numa relação direta com outros campos, já não está, como se formulou na modernidade ocidental, delineada pela noção de autonomia artística. A relação aqui não é tampouco um engajamento político-ideológico, como já se viu dos anos 30 atravessando toda a segunda metade do século XX. Sendo uma noção mais maleável pode tanto indicar o compromisso literário em dar visibilidade a uma comunidade ou cultura apagada ou excluída quanto às relações criativas que se estabelecem em rede, em grupos de escritas, em workshops de artistas, por exemplo. Ou seja: de um lado um olhar para culturas ancestrais não dignificadas pelo Ocidente, por outro, um pé nas novas tecnologias de escrita e de ligação entre as pessoas.

Existem pontos de encontro e diálogo entre a literatura, as redes sociais e os novos modos de escrita. Esse movimento democratizou a escrita?
Ana:
Como dissemos no texto que argumenta a proposta do Colóquio, “Nas diferentes dimensões sociais das práticas literárias, novas relações se consubstanciam: nas redes sociais, nos novos modos de escrita coletiva e de interação, nos festivais, nos ateliês de escrita, nos grupos de leitura, o literário se abre cada vez mais para o diálogo com as ciências sociais, tomando-lhe modelos, conceitos e práticas”. Logo, é evidente que as redes sociais, entre outros modos, acima citados, democratizam a atividade da escrita. A literatura eventualmente insurge nos meandros desses modos, outras vezes é afetada por eles. Mas, de uma ou outra forma, ela não está imune aos acontecimentos sociais que as redes promovem.

A literatura se tornou um objeto híbrido. Que papel ela assume agora, na sociedade, incluindo meio ambiente, as religiosidades e estudos de gênero?
Ana:
Os modos de relação da literatura estão muito mais próximos às práticas, grupos e questões que encontram sua concretude histórica, ou atual, do que aos ideais abstratos de “justiça” ou “liberdade” para todos. O “todos” está sobre a mesa de autópsia, digamos. E nele a literatura escreve como um bisturi. Isso a liga de um modo específico ao nosso tempo. Esse modo estamos chamando de “literatura relacional”, qual seja: sua ligação com o vivo, todo vivo, sua forma de redesenhar identidades apagadas ou extintas, sua voz contribuindo ao descentramento do modo de ver exclusivamente moderno e ocidental.

Há uma diversidade de convidados tanto em relação à nacionalidade – franceses e brasileiros – quanto aos temas das pesquisas. Quais são os pontos de contato entre eles?
Ana:
Tenho um grande lastro de convênios, formação na França, desde 1998. Com Alexandre Gefen, Tiphaine Samoyault e Dominique Viart criamos a primeira versão do argumento deste colóquio que é em sua origem binacional. Ele vai ser realizado também em Paris em janeiro de 2024. E esperamos não apenas testar a ideia de que a literatura contemporânea é uma literatura relacional, como também fazer uma análise comparativa entre esse fenômeno no Brasil e na França. Também temos a presença do artista peruano Adrian Ilave que trabalha (re)tecendo as roupas dos ancestrais da “realeza” Inca. E do argentino Gabriel Giorgi, com quem escrevi um livro para a Editora Bazar do Tempo: Ódios políticos e política do ódio: lutas, gestos e escritas do presente. Com o Alexandre Montaury, a quem agradeço e sem o qual esse colóquio decerto não ocorreria, revemos a proposta, inserindo-a no Brasil de hoje, e pensamos nesse corpus de convidados e nas questões a eles propostas. Encontramos o apoio da Universidade, dos Editais de Fomento – FAPERJ e CAPES –, e estamos, portanto, depois de anos duros, conseguindo realizar aqui esse grande evento juntos.